Vi luz na janela. lá dentro um
vulto indefinido deslocava-se pelo que parecia ser a cozinha, colocando a louça
no prateiro, mexendo os talheres na banca, pondo a mesa. Achei estranho. Era onde antigamente viviam os rendeiros da quinta, há muitos anos que se encontra vazio. Sempre o vi fechado, decrépito e abandonado.
O portão azul dá acesso direto ao anexo, trancado; as dobradiças enferrujadas denotando estarem paradas há muitos anos. O muro da quinta envolto no silencio do inverno frio, as ramadas despidas dos quiviseiros descaindo para a rua.
A moradia, no patamar de baixo, desabitada. Os descendentes venderam-na a um Inglês de Lisboa que raramente a visita, aguardando simplesmente o momento oportuno para rentabilizar o investimento, revendendo-a a preço mais elevado. Tem-se
deteriorado sem ninguém cuidar dela. As heras trepam pelas paredes, os pedaços de reboco e de estuque vão caindo e
desfigurando o muro. O anexo, desabitado e vazio, julgava eu, mais acima.
A loja onde outrora se
guardavam os animais e as alfaias agrícolas ficava no rés-do-chão. As escadas de cimento encostadas à
parede dão acesso ao piso superior, aos quartos e à cozinha. O telhado
côncavo, lembrando choupanas de colmo, a chaminé enegrecida pelo fumo que dela saiu durante muitos anos.
Subi a rua devagar, olhando atentamente para trás do muro alto, tentando perceber quantas pessoas
estavam na cozinha, procurando alguma pista que esclarecesse a minha surpresa
de ver o anexo habitado. Era noite, o reflexo da lua iluminava a
escuridão; o candeeiro da rua projetava o halo de luz sobre os paralelos e o
muro. Ninguém, apenas eu vasculhando a vida de quem ali estava, intrometendo-me
na sua privacidade. O ângulo em que me
encontrava mudou com a minha deslocação.
Fiquei na dúvida se não seria o luar ou a luz do candeeiro incidindo nas portadas de
madeira a dar a impressão de haver eletricidade
na cozinha. Talvez, o que me pareceu ser
gente, fosse o movimento da sombra dos
ramos próximos projetando-se na janela, dando a ilusão de pessoas a moverem-se
lá dentro. Pus-me à frente da casa, do
outro lado da rua, em cima do passeio,
olhando ostensivamente. Não era impressão minha, havia gente na
cozinha. Parecia uma mulher a lavar a
louça, não tinha a certeza. O vulto parou olhando na minha direção, talvez
se tenha apercebido que um estranho observava da rua os seus afazeres
domésticos. Fiquei perturbado, não quis ser indelicado com a pessoa ou a
família, incomodando com os meus olhares invasivos. Afastei-me, vendo a janela
iluminada cada vez mais longe, entre a copa das árvores, isolada, no silêncio
da noite de Inverno.
Infelizmente, com os preços
elevados das rendas, qualquer sítio
serve para viver. Vejo muitos estrangeiros nas vizinhanças, Brasileiros,
Asiáticos, Africanos. Levantam-se de madrugada, trabalham no Porto nas novas linhas do metro, na hotelaria, na restauração, nas fábricas dos arredores.
Mal pagos, ganhando o salário mínimo. Precários. O anexo talvez tenha sido alugado a
estrangeiros. Ainda bem. Assim as casas devolutas ficam ocupadas, vê-se gente diferente na pasmaceira desta terra, de
população envelhecida, de pessoas ociosas
que podiam trabalhar e se tornaram dependentes dos subsídios.
Dei a notícia à minha mãe: “sabes
que o anexo do palacete está a ser habitado?”, “A sério?! Quando eu era miúda
não vivia lá ninguém. Aquilo não tem condições nenhumas. O soalho é de madeira,
as tábuas devem estar partidas. A casa de banho é um cubículo de madeira com um buraco no meio sobre a fossa.” A madrinha, e tia, da minha mãe casou com o dono da quinta, uma família ligada às industrias de
Vila da feira, endinheirada. A minha mãe, de 80 anos, passou muitas horas da
sua adolescência na companhia da prima, na
salinha, aprendendo a costurar com ela. A casa foi desenhada por um arquiteto famoso
no início do século vinte. Um entendido na área disse-me que tinha influencias
da escola alemã, do movimento Bauhaus, de Berlim. Uau!!! Aqui, nesta pasmaceira,
um industrial burguês teve, há mais de 100 anos, o requinte de contratar um
arquiteto conceituado para lhe desenhar a casa. Talvez tenha sido o Marques da
Silva. Quartos com vistas amplas, estendendo-se até Espinho e ao mar. Corredores
largos e luminosos, de vidros nas paredes laterais, deixando entrar muita
luz a qualquer hora do dia; divisões e
arrumos no vão da escada, onde as
crianças se deviam divertir a brincar às
escondidinhas.
A quinta tem patamares espaçosos
onde foram plantados castanheiros, figueiras e laranjeiras. Um tanque e um cata-vento alto, de ferro, de dobradiças enferrujadas que rugem nos dias de vento. Sebes que dividiam os jardim em espaços
diferentes, dois terraços sobre as garagens e as escadarias largas que vão do
portão principal à moradia. Grades de ferro rendilhado sobre os muros. Lá
atrás, discretamente escondido, qual sentinela vigiando a casa, o anexo que
terá servido para alojar a família de rendeiros nos primeiros tempos, após a
construção da quinta.
“Que eu saiba nunca morou ali
ninguém, os meus tios não tinham trabalhadores por conta própria e as primas
que cresceram na casa não se aventuravam a entrar no anexo. Havia jornaleiros, pagos ao dia, que
trabalhavam nos quintais. Eram eles que guardavam
as enxadas e as pás lá dentro, tratavam
da pocilga e do galinheiro que havia no rés-do-chão. É do que me lembro”,
concluiu a mãe. “Vou perguntar à prima Hermínia,
talvez tenha o contacto do Inglês que comprou a casa e consiga descobrir alguma
coisa.”
A quinta está abandonada há
muitos anos. Os primos da minha mãe que ali cresceram, mudaram de casa quando
se casaram. Ficou definitivamente vazia quando morreu a tia viúva.
Os netos, pessoal urbano, habituado a espaços pequenos e a ser
independente, nunca se sentiram entusiasmados em herdá-la. Daria muito trabalho e seria demasiadamente
grande para a vida moderna, sem tempo para cuidar dos campos e do jardim. A solução foi vendê-la.
Entende-se perfeitamente a minha
surpresa quando vi alguém no anexo.
Passei mais algumas vezes,
durante o dia, na rua do portão lateral
que dá acesso ao anexo. Não voltei a ver qualquer movimento. Dias mais tarde a
minha mãe disse-me: “Falei com a prima Hermínia. Ninguém alugou a casa, esteve
sempre vazia. O soalho desfez-se com os anos, não há qualquer separador entre o
rés-do-chão e o andar de cima. É impossível viver lá dentro.”, “Tens a certeza,
mãe?”, “Claro, a Hermínia até telefonou ao Inglês a perguntar se alguém alugou
a casa.” Achei estranho, no entanto, não pensei
mais no assunto.
Voltei a passar de noite ao lado
do anexo para verificar se alguém o tinha ocupado ilegalmente. O portão da rua
estava fechado. É impossível entrar sem chave, a não ser que o subam, contudo tinha
de ser alguém muito ágil. E quem se atreveria, estando ali ilegalmente, a acender uma lanterna, dando nas
vistas. Além disso o anexo estava sem chão entre o piso térreo e o andar de
cima, como é que podia andar alguém lá em cima? Estes pensamentos confundiram-me.
Eu tinha visto bem. Não estava a ficar
maluco.
Ninguém vive naquela rua. É uma estrada
estreita de paralelos, sombria, onde só alguns carros passam atalhando caminho
para outras ruas. Quase ninguém passa ali a pé durante o dia, muito menos de
noite. Só mesmo eu. Coloquei-me no mesmo
sítio da outra noite observando as janelas do mesmo ângulo, a luminosidade do
candeeiro e da lua eram idênticas.
Estava frio. A noite triste e pesada. Só eu, sozinho, olhando a janela à
distância. As sombras das árvores refletiam-se nos muros, os ramos despidos
agitavam-se levemente com o vento. O anexo
ao fundo, atrás do muro e das
sebes do quiviseiro, impondo-se na escuridão. De repente, senti um calafrio a
percorrer-me a espinha com o pensamento súbito que tive: estaria a observar uma
casa assombrada? Teria visto um fantasma
na outra noite?
Desviei o olhar e sai
imediatamente daquele lugar. Caminhei apressadamente para a outra rua, com luz,
casas habitadas e carros a circular, pensando
nos estranhos eventos que subitamente fizeram sentido. Apavorado, baralhado, de
corpo gélido. Não acredito em fantasmas. Nunca assisti a nada que comprove a
sua existência, mas, quando, de repente, nos deparamos com fenómenos
inexplicáveis é nisso que pensamos. Lembrava-me
do momento em que o vulto fantasma me viu de dentro do anexo. Sentia um terror
irracional, um medo inexplicável imaginando que ele podia ter fixado a minha
cara, os meus traços, a minha fisionomia. Não voltei a passar de
noite naquele lugar e de dia o meu sangue fica mais gélido quando olho para o
anexo velho e silencioso por detrás do muro.