sábado, 19 de julho de 2025

Leonard Afouda encontra Angélique Kidjo em Espinho


Conheci o João há muitos anos,  no sul de Inglaterra. Um miúdo tímido,  com uma mochila às costas maior do que ele e um saco de pano cheio de conservas.  Achei bizarro:

 - Por que trazes tantos enlatados contigo?

- Vim carregado de enlatados porque pensei  que em Inglaterra era tudo mais caro. Trouxe de Portugal para poupar dinheiro na alimentação.

Dei uma grande gargalhada - era completamente louco. Foi assim que nos conhecemos.  

Trabalhámos numa quinta na apanha de maçãs. Por sermos cristãos, católicos, e com hábitos culturais parecidos,  tornamo-nos próximos. Os restantes trabalhadores,  eram sudaneses:  muçulmanos rigorosos, com quem convivíamos e nos dávamos bem. Ao contrário deles, bebíamos álcool, comíamos carne de  porco,  não interrompíamos o trabalho às 3 da tarde para fazer  abluções e rezar virados para Meca.  

O João ficou apenas um mês na quinta, regressando a Portugal no início das aulas. Eu voltei à Turquia um pouco mais tarde, onde estudava engenharia agrónoma. Beneficiava de uma bolsa de estudo que o governo do meu país oferecia aos melhores estudantes, em países com os quais tinha protocolos. Vivia quase todo o ano na Turquia, num pequeno quarto da residência universitária. No verão,  trabalhava na quinta, no condado de kent, perto de uma vilazinha pitoresca chamada Cranbrook.  Todos os anos, ligava antecipadamente ao patrão,  Mr. Pullitzer, a perguntar  se havia trabalho.

Não é por racismo, nem preconceito, mas por o João ser branco, percebi logo que não tinha a mesma necessidade de trabalhar que  nós tínhamos.  Era um miúdo  imberbe e ingénuo, mais novo do que nós. Tinha 18 anos, frequentava ainda o liceu, era a sua primeira vez em Inglaterra, a ganhar os trocos necessários para os gastar em viagens de comboio a Londres, aos fins-de-semana, sem preocupação em economizar - apesar das latas de conserva.   

Eu e os sudaneses andávamos nessas andanças há mais tempo, frequentávamos a universidade. Eu tinha 24 anos, vivia independente desde que saíra do Benim para estudar engenharia em Antalya. Levava uma vida rigorosa e apertada. Quando as maçãs não estavam maduras, passeava nos pomares, brincava com os dois dobermanns do sr. Pullitzer,  que se escondiam nas filas de macieiras para me fazerem emboscadas inofensivas.

Vivemos algumas peripécias curiosas que um dia poderei contar. O João regressou a Portugal e, o mais incrível de tudo, é que ficamos amigos até hoje. Correspondemo-nos muito tempo por carta, e depois pela internet. Regressei ao Benim quando terminei o curso, tornei-me funcionário governamental  no gabinete  de apoio à reflorestação de  comunidades rurais.

O mais incrível ainda - e a vida tece-se de encontros e acontecimentos improváveis -  é que, na única vez que vim a Portugal visitar o João, deu-se a coincidência extraordinária de encontrar a minha compatriota,  Angélique Kidjo.  Caminhávamos pela esplanada junto ao mar,  na cidadezinha de Espinho, próxima do Porto, onde ele vive. Vi o enorme cartaz com a sua figura esbelta em grande plano, a anunciar o concerto que daria. O meu coração sobressaltou-se, fiquei com o nervosismo próprio que antecede o presenciar de um grande evento. Expliquei ao João quem era ela:  uma compatriota que eu tivera o prazer de conhecer pessoalmente e com quem troquei algumas palavras -  uma diva, uma grande senhora da música africana, uma lenda vida. Não poupei palavras, não encontrei outras para exprimir a importância que ela tem  e o orgulho que nós, benineses, sentimos por ela -  uma embaixadora da nossa cultura, das muitas Áfricas que existem no nosso imenso continente - a não ser estes chavões redundantes.

Sobressaltei-me de emoção, gaguejei. O concerto era imperdível:

- João, cancela tudo o que tiveres para fazer, traz os teus filhos, esposa, amigos, todos! Para  ver o concerto.

Ficou impressionado com a minha veemência. Disse que não me preocupasse, iriamos cedo, ficaríamos sentados nos primeiros bancos,  em frente ao palco montado no largo da câmara.

O concerto decorreria na noite desse mesmo dia. Entrada livre. Ocupamos os nossos lugares aleatoriamente. Aguardei religiosamente o início do concerto da minha amada compatriota, contando os minutos que restavam para o grande momento.   Olhei discretamente para trás: a praça estava  repleta de pessoas de todas as idades, todas as cadeiras ocupadas e à volta delas, de pé,  muitas  outras  pessoas. Senti um orgulho tremendo.

Entram os músicos da Orquestra Clássica de Espinho. Aplausos.

Entra o maestro, Pedro Neves. Aplausos.

Tocam uma música introdutória,  lembrando vagamente ritmos africanos.

Aplausos.

O ecrã gigante exibe um curto  filme sobre o projeto de Angélique Kidjo  com orquestras clássicas dos vários países por onde tem passado.  

Entra um guitarrista africano. Toca  uma melodia a solo, acompanhado pela orquestra. Entra Angélique Kidjo,  de touca a cobrir a nuca e o  traje garrido de linhas africanas. Caminha diretamente  para o microfone no centro do estrado - uma rainha deslocando-se solene, segura de si, enchendo o palco com a sua presença forte. Começa a cantar.

O público,  inicialmente  circunspeto,  dançou, pôs-se de pé, acompanhou os ritmos mais vibrantes - adaptações de temas africanos conhecidos e originais. Vivi tudo  com  especial comoção,  pelos motivos que referi. Vieram-me  lágrimas aos olhos.  

Angélique Kidjo  finalmente falou, em Inglês, sobre o seu projeto, sobre a importância da música  na união dos Seres Humanos.

- Somos Todos Seres Humanos. Não importa a nossa cor, ideologia, religião. Ao destruir e ser intolerante com outras culturas, perdemos todos a nossa humanidade comum.

A Humanidade é só uma.

Grande ovação. A audiência ficou mais entusiasmada e redobrou de energia na música seguinte: Jerusalema.

Quis gravar um vídeo e partilhá-lo nas redes sociais para certas pessoas o verem,  com uma legenda simples e irónica:

Para todos os racistas e preconceituosos deste mundo.

Não o fiz.

No fim do concerto, não resisti. Que diabo! Devíamos ser os únicos benineses em Espinho. Subi as escadas do palco, os jovens músicos arrumavam os instrumentos. Pedi autorização para entrar no camarim e falar com ela. Foi fácil. Ao verem um negro desconhecido a falar inglês,  devem ter pensado que se tratava de um amigo próximo. Chamaram-na imediatamente.

Ela apareceu sem a touca, com o cabelo curto, mais velha de perto,  cansada das duas horas de concerto. Dirigi-me a ela em Fon, a língua ancestral dos nossos antepassados, falada  no Sul do Benim,  onde ambos nascemos:  

- Angélique, muito obrigado. Não podia sair daqui sem falar contigo.

Olhou-me muito surpreendida  por encontrar uma pessoa a falar a mesma língua nativa. Relembrei-lhe o encontro que tivemos  em Ouidah,   há muitos anos, e  o  número de vezes que a vi em concertos no nosso país.  Ficou esfusiante com a minha generosidade e ligação à sua música. Demos um abraço apertado,  como se faz em África, quando  pessoas da mesma família se encontram. Tiramos selfies. Perguntou onde se podia comer àquela hora e convidou-nos a ir  com ela.

Fomos a   um restaurante,  com o seu staff,  em frente ao mar,  num largo passeio de calcário, comum em Portugal, de pedras brancas e pretas,  meticulosamente colocadas formando padrões geométricos. Estivemos mais algum tempo juntos,  a petiscar e  a beber. Foi um dia memorável.  

 





sábado, 5 de julho de 2025

Vieira do Minho



Sinto-me uma estrangeira. Do outro lado do rio, gruas  e mais gruas. A cidade transforma-se vertiginosamente, sem qualquer planeamento, ao que parece. Se houvesse planeamento, os novos edifícios seriam construídos mais espaçadamente, com jardins e estradas pedonais entre eles. A densidade de construção é tremenda. Imagino que, em  poucos meses, as novas zonas residenciais estarão apinhadas de carros; haverá mais engarrafamentos, acessos mais demorados e confusos. Mais buzinadelas, ruído e poluição atmosférica.

Por estes e outros motivos, resolvi vir alguns dias  para Lamêdo,  esquecer a cidade,  ouvir o silêncio, o rumorejar do rio Ave perto da nascente, na serra da Cabreira. Levanto-me cedo todas as manhãs, subo o trilho até à ponte medieval, fico a olhar embevecida os leixões musgosos mergulhados na água translúcida, os fetos, raízes e árvores centenárias que cobrem a encosta e o que resta da ponte. Depois, subo mais umas centenas de metros, passo pelos velhos moinhos abandonados, disfarçados nas silvas,  e chego à nascente. Olho os montes em redor, a frondosa mata do Turio, o vale e a vila de Vieira do Minho, rodeada de vegetação opulenta.

O dia  até correu bem.  Apesar de procurar o silêncio, não me consigo distanciar totalmente das modernices quotidianas. Trouxe o portátil,  faço a ligação wireless ao telemóvel e fico com internet disponível nesta pequena arrecadação em que pernoito, isolada.

As notícias inquietam-me: saber que morrem, num país distante, crianças e mulheres inocentes, vítimas de uma guerra injusta e tenebrosa, de extermínio e ocupação ilegal, à qual os nossos países assistem sem nada fazer, tratando como igual o agressor.

Passei uma parte da manhã a enviar mensagens eletrónicas: utilizei layouts  muito semelhantes -  alterei o nome das empresas  e, nos últimos parágrafos, especifiquei o tipo de negócio que mantêm com o ocupante.

Dear Sirs

a)        I have to informe you that I will not buy any product related to your label (TV, household appliances, mobile phone,...) while your firm stands as " the main contractor for the Euro-Asia Interconnector, a  cable that is planned to connect  illegal settlements in the…. occupied territory to Europe”.

 I will ask my friends and relatives to do the same and tell them  why.

b)       as your  customer for some  years and as someone pleased with your service, it is with great regret that I inform your firm that I will stop using your platform to book hotels while your  offering  rentals in illegal ….. settlements.

I will look for alternative ways to book hotels in advance.


Thank you very much,

Fiquei mais reconfortada: ficam a saber que não somos indiferentes, que não podem fazer negócios a qualquer custo. As multinacionais devem ser responsáveis, demonstrar ética e o mínimo de solidariedade com os mais vulneráveis e injustiçados.

Não tenho cozinha, almoço todos os dias na “Casa Pancada”. A dona Ermelinda é uma joia de pessoa,  m`nina, hoje temos rojões. m`nina, hoje temos cabrito. A m`nina é  muito bonita”. Não há ementa. A refeição é confecionada  com os ingredientes mais comuns do dia e da época. Dizem que o nome do restaurante se deve à pancadaria frequente que por ali havia quando era uma tasca. A dona Ermelinda já ultrapassou os 80 anos e gere o restaurante há mais de 30.  

Está a decorrer o festival “Província Sonora”. Esta tarde atuou o violoncelista Filipe Quaresma no Centro Cultural  Casa de Lamas. Peguei na bicicleta e desci depois do almoço  ao centro da vila para o ver  tocar os prelúdios de Bach.  Foi um  privilégio ouvir, gratuitamente e  ao vivo,  melodias divinais num edifício histórico do século XVI,  entre as paredes sólidas de granito e o calor quente e abafado. A minha mente e alma  evolavam-se   ao som da música.  Encontrei no concerto a  Presidente da Câmara, a professora Elsa Ribeiro,  simpática e prestável como sempre. Acha estranho uma mulher sozinha vir  para Vieira do Minho, isolar-se num barracão na aldeia de Lamêdo. Expliquei que era só por uns dias, que estava a precisar de sair da cidade e que me mantenho muito ocupada,  com as caminhadas na serra da Cabreira e a navegar na internet, como esta manhã.

Ofereceu-me o folheto turístico do concelho. Depois disso, ainda tive forças para pedalar até à Ermida da Senhora da Lapa, onde vai decorrer uma grande romaria no próximo domingo, e regressar derreada ao meu refúgio temporário.






O Violoncelista Filipe Quaresma, na Casa de Lamas (com áudio)

Casa de Lamas



Ermida da Senhora da Lapa






segunda-feira, 16 de junho de 2025

Yitzak Escreve Uma Carta a Paulo Rangel

Yitzak é português de ascendência sefardita. Conseguiu a nacionalidade sem falar a língua, apenas porque, graças a um escritório de advogados bem pagos, comprovou a sua ligação a uma comunidade portuguesa que fugiu da Inquisição no século XVI.

Vive dos rendimentos no ramo imobiliário: apartamentos que aluga a turistas no bairro de Jaffa, em Telavive. Em Portugal, continua a investir no mesmo setor — comprou e recuperou solares no Alto Minho, abandonados e desbaratados. Sítios tranquilos, pacatos, a uma hora do aeroporto de Pedras Rubras, nas rotas dos caminhos de Santiago. Transformou-os em alojamentos locais e pequenos hotéis de charme, com piscina e vistas para a serra de Arga.

Inicialmente, viajava bastante entre os dois países. Deixou de o fazer desde que o estado de emergência foi declarado. O ataque ao Irão veio piorar a situação. Os voos foram cancelados devido ao início da guerra, a 13 de junho — dia de Santo António. Estava ele em Alfama, com outros amigos israelitas, entre a imensa multidão de foliões que se comprimia ao passar pela esplanada de uma das tasquinhas da rua estreita. As mesas estavam enfeitadas com toalhas de algodão axadrezado vermelho e branco, manjericos e fitas coloridas. As sardinhas assavam nos braseiros — ele sentia o cheirinho tão característico — quando viu a mensagem SMS da mãe: “Israel atacou o Irão”. Sentiu o sangue gelar — não imaginava que a loucura do seu governo chegasse tão longe, no preciso momento em que os Estados Unidos e o Irão negociavam um acordo nuclear!

Ligou imediatamente à mãe — eram três da manhã em Telavive. Tudo tranquilo. A mãe falou-lhe com a voz serena e resignada de quem está habituada a viver com a incerteza. Estava atenta ao som das sirenes, pronta para se refugiar no abrigo debaixo da garagem do prédio, em caso de urgência. Seguramente o Irão ripostaria, mais tarde ou mais cedo.

Ele e os amigos regressaram imediatamente ao Porto, pela A1, em alta velocidade, atentos às notícias vindas de Israel. Ainda bem que decidiu adquirir a cidadania portuguesa — tinha outro país onde viver nos momentos de incerteza e insegurança. Imaginava que muitos outros israelitas começariam a fazer o mesmo. A liberdade deteriorava-se cada vez mais: começou com o ataque a Gaza — o governo dizia que seria por pouco tempo. Passaram vinte meses, a situação política de Israel só se agravou, e o conflito tornou-se mais complexo. Um povo eternamente a fugir!

Começou a ver Portugal como um novo refúgio, uma nova pátria de acolhimento. A ironia histórica de milhares de judeus regressarem a Portugal, quinhentos anos depois de os seus antepassados terem sido expulsos, e começarem, indiretamente, a expulsar os portugueses de suas casas! Como investidor imobiliário, sabia bem que os preços da habitação em Portugal estavam demasiado altos, muito por culpa de pessoas como ele — endinheiradas — que compravam casas, fazendo disparar os preços e impedindo os portugueses nativos, com uma classe média já muito fragilizada, de adquirirem casa própria. Ironias do destino!

Obviamente, acompanha tudo o que se passa em Israel. Está farto da passividade da comunidade internacional em relação à Palestina. Acha que os palestinianos merecem um Estado e devem viver em paz na terra que também é dos seus antepassados — só o diálogo e o compromisso podem solucionar uma questão tão complexa. A guerra, a injustiça das mortes e das atrocidades em Gaza só agravará o ressentimento internacional contra os judeus. A guerra não é solução. Mas o povo israelita também merece uma pátria, viver em paz e obter garantias inequívocas de segurança por parte dos países vizinhos, nomeadamente do Irão e dos movimentos por ele apoiados.

Assistiu entusiasmado à iniciativa da Freedom Flotilla, gente intrépida e corajosa, e ficou alarmado com o aprisionamento do navio, a 9 de junho. Escreveu imediatamente uma carta ao ministro dos negócios estrangeiros de Portugal.


Carta:

Ex.mo Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Paulo Rangel,

Acabei de saber, através da comunicação social, que os 12 ativistas a bordo do navio supracitado, pertencente à coligação Freedom Flotilla, foram intercetados pelo Exército israelita em águas internacionais.

Impedidos de cumprir a sua missão humanitária com a população da Faixa de Gaza — cercada há 20 meses por Israel, tendo sido, nesse tempo, bombardeada, com infraestruturas essenciais destruídas e, por fim, vítimas de uma morte lenta devido à fome, usada como arma de punição coletiva contra uma população indefesa —, Israel excedeu há muito as violações do Hamas de 7 de outubro de 2023 em território israelita.

Peço, no âmbito das funções de enorme responsabilidade e prestígio desempenhadas por V. Ex.ª, que V. Ex.ª, os seus assessores e os colegas dos restantes gabinetes dos Negócios Estrangeiros dos países da União Europeia tudo façam para que os 12 ativistas regressem sãos e salvos aos seus países e famílias.

De acordo com o Direito Internacional, Israel violou leis humanitárias ao intercetar e raptar os ocupantes de um navio em águas internacionais, e ao impedir o acesso a água, alimentos e medicamentos a populações à beira da morte.

Com os meus melhores cumprimentos,
Yitzak Abdelrasheed

sábado, 31 de maio de 2025

Trilho da Levada de Víbora e Moinho de Rei (PR1 - CBC)


A Biblioteca Pública de Perosinho surgiu da iniciativa de um grupo de  amigos, em 1978.  Começaram por  vender panfletos  aos fiéis, nos  final  das missas, para angariar dinheiro e comprar livros.  Fizeram uma pequena biblioteca que funcionou numa arrecadação exígua -  tornou-se pequena para a quantidade de livros que adquiriram. Obtiveram  a colaboração da paróquia, que lhes cedeu uma sala maior. Graças ao visionarismo do pároco, os terrenos herdados de uma quinta da freguesia foram loteados e atribuídos às coletividades locais; a biblioteca ficou com o lote onde hoje se situa. Na mesma rua – a Rua das Coletividades – estão a Academia de Música,  o Rancho Folclórico,  o Clube de Caçadores e o pavilhão desportivo.

A biblioteca paga contribuição autárquica:  uma instituição que presta um serviço público devia estar isenta. “Estamos a tentar mudar os estatutos para ficar com a classificação  de instituição de utilidade  pública. É obrigatório ter página na internet  e apresentar contabilidade todos os 3 meses”, diz-me o  Vítor, diretor da biblioteca.  Todos os colaboradores são voluntários. Para reduzir as despesas,  fazem eles próprios a limpeza das instalações em vez de pagarem a uma empresa. Pagam luz e água. O dinheiro é sempre contado. Tem menos de 200 sócios, que pagam de cota 10€ por ano.

Organizam  encontros com escritores - já receberam Ana Luísa Amaral, Valter Hugo Mãe, Nuno Júdice, João Garcia, Gonçalo Cadilhe. Têm protocolos com instituições para troca de livros, participam ativamente na Semana das Coletividades da freguesia,  organizam peddy-papers e marchas de montanha.

A IX marcha de montanha é em  Cabeceiras de Basto – o trilho da Levada de Víbora e dos Moinhos do Rei. Converso com o Vítor no fim da caminhada,  no parque de merendas do Oural, quando os quarenta participantes se dispersam pelas mesas e partilham o lanche. Um grupo de motards faz picnic, montam  barraca com a máquina de pressão e oferecem finos ao grupo. Espaço agradável,  arborizado, com mesas de cimento e braseiros, atravessado pela levada que desagua na barragem.  

Fizemos o trilho circular no sentido dos ponteiros do relógio, passando debaixo de um frondoso carvalhal na parte inicial. Parámos para lanchar na área  de lazer de Víbora e, após uma subida bastante acentuada e difícil – em hora de muito calor! -, caminhámos pela zona mais elevada do trilho, de onde se desfrutam paisagens maravilhosas sobre as montanhas em redor. Rodeadas de uma estranha neblina que,  de acordo com as notícias, deviam ser as poeiras  do deserto africano a cobrir o céu de manto acinzentando, dando um ar místico e misterioso à paisagem. Ali próximo,  o miradouro de Porto d`Olho, com a pequena ermida, onde se chega realizando um desvio de 800 metros.

Apanhamos a levada,  seguimos  ao longo do canal construído por antepassados longínquos, que usaram técnicas milenares infalíveis.  Centenas de anos mais tarde, a água continua a correr, a cumprir a sua função de  irrigar  os pomares e quintais  da região – Li esta semana nas notícias, a propósito do apagão, que, sem eletricidade, a água nas nossas casas duraria apenas algumas horas. Ficaríamos todos sem água!!! Talvez devêssemos valorizar estes conhecimentos ancestrais que permitiram à humanidade chegar até aqui, sem danificar a natureza, mantendo a sua fertilidade e funcionalidade.

A água corria na levada, ganhava velocidade  em locais com  declive mais acentuado,  fluía serenamente nos sítios planos – uma delícia! Com o calor que estava soube tão bem molhar os braços na água límpida, refrescar o corpo,  senti-la na pele a correr.  

O Moinho do Rei  é uma referência a D. Dinis. Construídos no século XIII, os moinhos hidráulicos impulsionaram a moagem de farinhas no reino,  laboraram até serem substituídos por processos elétricos. É hoje um pedaço de pedras amontoadas e  cobertas de musgo, cujo único vestígio da sua função prévia é estar ao lado da levada. Resquício de uma época em que vários moinhos laboravam plenamente, memória bucólica de um mundo desaparecido.

Visitamos o Convento Beneditino de São Miguel de Refojos, a “Joia dos conventos beneditinos portugueses” – vinte e nove ao todo,  como nos disse mais de uma vez a guia do museu. Falou na simetria tradicional dos conventos barrocos: este apresenta uma simetria perfeita e elementos falsos a contrastar com os verdadeiros do lado oposto. “Refojos” é uma deturpação da palavra “refúgio” - para aqui vieram os eremitas originais há mais de mil anos, quando descobriram o local intocado no meio das serras, rodeado de água, onde era possível ter uma vida de recolhimento, contemplação e meditação. Mais tarde, aderiram à ordem beneditina, foram crescendo, ganhando importância e riquezas. O atual mosteiro começou a ser construído em 1755 – o ouro do Brasil deu para estas excentricidades!   Abandonado após as guerras liberais, por alienação do património da igreja, até à morte do último frade. Hoje funcionam nele  serviços da câmara, o Museu de Arte Sacra e um espaço de acolhimento ao visitante.  

...passando debaixo de um frondoso carvalhal na parte inicial






...após uma subida bastante acentuada e difícil – em hora de muito calor! -, caminhámos pela zona mais elevada do trilho, de onde se desfrutam paisagens maravilhosas sobre as montanhas em redor. 






Ali próximo, 
 o miradouro de Porto d`Olho, com a pequena ermida, onde se chega realizando um desvio de 800 metros.


Centenas de anos mais tarde, a água continua a correr





Resquício de uma época em que vários moinhos laboravam plenamente, memória bucólica de um mundo desaparecido.






Mosteiro Beneditino de São Miguel de Refojos