sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Bandarra, o Profeta de Trancoso

 

Tinha apenas dois nomes: Gonçalo Anes.

Bandarra era alcunha, significava boémio, bon vivant. Possuía dinheiro, gostava de se vestir bem, sabia ler - raro na época - e foi sapateiro. Consertava sapatos e também os fabricava, o que implicava possuir conhecimentos e ferramentas específicas, transmitidos através das gerações por laços familiares e corporativos. Todas as evidências indicam que era Cristão-novo, embora não hajam provas conclusivas desse facto. Por isso mesmo, sabe-se pouco de Bandarra: os Cristãos-novos tendiam a ocultar as práticas judaicas, por questões de sobrevivência. Artesão culto e abastado, preferia o Velho ao Novo Testamento: características que também se identificavam com a comunidade judaica.

Trancoso, a vila onde nasceu, possuía a maior comunidade da Beira Interior: 700 pessoas, antes da expulsão e das conversões forçadas decretadas pelo rei D. Manuel I e do estabelecimento da inquisição por D. João III.

Foi o primeiro nome da vila a ser chamado ao tribunal do Santo Ofício, em 1541 - dos 500 nomes hoje gravados no museu Judaico, condenados pela inquisição até 1759, quando D. José I aboliu a distinção entre Cristãos-novos e Cristãos-velhos. 

Não foi acusado por heresia e suspeitas de judaísmo, mas sim por escrever textos polémicos, em verso: as Trovas, supostamente continham profecias e tornaram-no conhecido como vidente e místico. Os versos podiam ser interpretados de várias formas, a igreja Católica não aceitou que a sua autoridade e ortodoxia fossem questionadas. Foi condenado e proibido de escrever - talvez o maior castigo que se podia aplicar a um poeta.

Regressou a Trancoso e terminou os seus dias na aldeia vizinha de Nogueira, a 6 km da vila. Viveu isolado numa choupana, continuou a fazer profecias e a receber visitas. A lenda das adivinhações cresceu com o tempo: diz-se que previu  o fim  do Santo Ofício, a própria morte e o pagamento da transferência dos seus restos mortais para a igreja de São Pedro, onde se encontra sepultado. Sabe-se que foi casado e teve duas filhas. 

As profecias do fim do império inspiraram o Padre António Vieira e, mais tarde, Fernando Pessoa, que elaboraram a partir delas o misticismo messiânico presente na obra de ambos. Esse misticismo manifestava-se na crença do regresso do rei D. Sebastião, o Desejado, e no advento de um novo império, que seria o quinto e último da história da humanidade, um império construído pelos portugueses, de caráter espiritual e religioso, no Padre António Vieira; cultural e simbólico, em Fernando Pessoa. 

Bandarra foi um espírito livre numa época de fanatismo e perseguições religiosas, adaptou-se ao seu tempo, escreveu por metáforas, alusões e alegorias,  o que não podia dizer diretamente. Um homem demasiado avançado numa época em que só a palavra da ortodoxia Católica era válida.

Trancoso possuía então uma próspera e numerosa comunidade judaica, separada da cristã pela rua da Corredoura. Os cristãos-novos, convertidos à força, gravaram cruzes nas paredes das portas para indicar que se tornaram cristãos e adoravam Cristo, mas adicionaram-lhes sinais compreendidos apenas pela sua comunidade, revelando que, secretamente, continuavam a ser judeus. Esses símbolos ainda são visíveis no interior da muralha, especialmente na rua da Alegria. As casas tinham passagens secretas para as dos vizinhos. Outra característica das habitações judaicas era a existência de duas portas para a rua: uma pequena, para os assuntos domésticos; outra maior, destinada ao comércio.

Túmulo do Bandarra na igreja de São Pedro

Rua da Alegria 


Símbolos nas casas dos Cristãos-novos 






Boneco que representa o padre Costa, de Trancoso: gerou 299 filhos em 53 mulheres. 


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Castelo Mendo

Também Castelo Mendo foi o resultado da sua posição geografica, cresceu à sombra das guerras de fronteira, dentro de muralhas. Hoje, é uma das 12 aldeias históricas que fazem parte dos roteiros turísticos da Beira Interior. Poucas dezenas de habitantes, silêncio nas ruas vazias, em contraste com o que foi há séculos atrás. 

Mais um retrato de um país que não sabe o que fazer com o seu passado e história, repleto de camadas esquecidas, que a maioria dos portugueses ignora, onde valeria a pena investir e reconstruir, habitando e valorizando economicamente os locais de baixa densidade. 

Nas traseiras das ruínas da igreja de Santa Maria do Castelo, uma sepultura solitária jaz silenciosa entre as ervas. A placa ao lado informa que se trata da "Sepultura do General", o nobre Miguel Augusto de Sousa Corte Real, "barbaramente assassinado pelos seus próprios soldados em 1840", aos 37 anos de idade. Imagino que terá sido uma vítima tardia da guerra civil entre absolutistas e liberais. A praça-forte de Almeida manteve-se fiel ao rei D. Miguel, o Usurpador, até 1840. Não encontrei, em Almeida, explicações sobre como caiu na posse dos liberais,   nem, em Castelo Mendo, em que circunstâncias políticas o fidalgo foi assassinado. No entanto, considero perfeitamente plausível, unindo os fios da história, que tenha sido vítima desse contexto. 

A guerra civil terminou oficialmente em 1834 com a vitória dos liberais, o que demonstra o quão difícil foi unir o país, assolado por guerrilhas que se mantiveram ativas por muitos anos. Surtos de violência, fanatismo e assassínios eram comuns nestas paisagens serenas e aprazíveis.

Vimos uma senhora debaixo dos ramos da árvore frondosa, fora da muralha a esticar os braços e a levar as mãos à boca, discretamente. Quando saiu, fomos para a árvore. Tal como desconfiávamos, tinha fruta. Amoras roxas, carregadas, entre as folhas banhadas pelo sol. Uma amoreira selvagem com brincos vermelhos e maduros pendurados. Fruta rara que não se compra nos supermercados, nem se vê nos pomares. 

Começamos a apanhá-las e a comer, debaixo de nós o chão carregado de amoras esmagadas por muitos pés  - nódulos de vinho derramado e coágulos de sangue. Sabor intenso, maravilhoso, como já não existe na fruta normalizada e standardizada. Sujamos os lábios e as mãos de tinta vermelha, lambuzamos os dedos, parte da nossa roupa ficou salpicada de nódoas. Saboreei o sabor primitivo da fruta madura:  o mesmo que os nossos antepassados conheceram e que perdemos. Lembrei-me da cerejeira branca na berma da estrada em Trás-os-Montes, na minha infância. 

Com tanta guerra, violência e medo, ainda há surpresas generosamente oferecidas pela natureza ao Homem. 










Desenhos de Duarte D'Armas 

Sepultura do General 


Museu Histórico-Militar de Almeida

Celebrando a Vitória, fotografia de Arnaldo Garcês. MHMA

O texto deve ser lido com esta música de fundo (clicar aqui). Perceberão porquê no último parágrafo.

Impressionam os artefactos militares inventados pelo Homem. O museu expõe réplicas e armas originais dos povos que passaram no território de Almeida, e miniaturas de soldadinhos a travarem batalhas, desde os Romanos e Lusitanos até à Primeira Grande Guerra Mundial. 

Foi assombrosa a criatividade humana, ao longo dos séculos, para inventar armas que provocaram mortes, mutilações e dores indizíveis nos inimigos. Os Lusitanos usavam sabres e falcatas de ferro, perfuravam intestinos de um só golpe. Os Romanos infligiram os mesmos ferimentos com gládios - povo tecnicamente mais evoluído,  inventou catapultas que lançavam projéteis de mais de 20 kg até 400 metros de distância, capazes de arrasar aldeamentos, derrubar muralhas e esmagar, de uma só vez, dezenas de inimigos.

No cerco de Lisboa, utilizaram-se torres de assalto, de vinte e sete metros de altura, para ultrapassar os muros e portas da cidade. 

Fabricaram-se vários tipos de objetos, cortantes e contundentes:  lâminas compridas, gumes metálicos, afiados e reluzentes, cada vez mais sofisticados e letais - decepavam mãos e pernas num abrir e fechar de olhos. Malhos deformavam cabeças. Morteiros portáteis, canhões e colubrinas (canhões mais compridos, pesados e potentes) afundavam navios. As baionetas - espingardas de lâmina na ponta do cano, preparadas para a luta corpo a corpo - espetavam o inimigo quando estava estendido no chão. Na Primeira Grande Guerra, as metralhadoras disparavam  dezenas de balas em poucos segundos - uma inovação que alvejava vários inimigos de uma só vez.

Objetos que agora se observam silenciosos nos museus militares do mundo, depois de terem cumprido a sua  tenebrosa missão.

Exigiam conhecimentos técnicos e científicos avançados para o seu fabrico, minuciosamente aplicados. Eram construídos com os melhores materiais do seu tempo: madeiras finas de cerejeira, metais resistentes de bronze e ferro fundido. Designs atraentes, o nome do fabricante delicadamente gravado na superfície metálica e polida da arma, a atestar a origem nas mais recomendadas oficinas do mundo - como  produtos de luxo a criar a ilusão de invencibilidade.

Apreciados em vitrinas de vidro e salas preparadas para receber confortavelmente os visitantes curiosos, fascinados pela História e pelo passado. Colocados em antigas masmorras, asfixiantes, transformadas em salas agradáveis, sem o sangue e o horror indescritível da realidade da guerra, deixando apenas a memória e o relato de tempos distantes.

Perturba constatar o engenho e a capacidade humana utilizados para conceber instrumentos destinados a promover a morte e a destruição do seu semelhante. Exibem-se armas utilizadas ao longo de 2000 anos de conflitos,  que  arrastaram os homens e as  famílias deste território - atualmente tão sonolento e procurado pelo sentimento de  tranquilidade que  transmite - para a guerra.  Algo inconcebível para quem nasceu no fim do século passado e viveu sempre em paz. A paz talvez seja uma exceção e não a regra.

O rei D. Manuel I ordenou o registo das 51 fortalezas na fronteira portuguesa, de Castro Marim a Caminha,  ao desenhador Duarte D'Armas. Um documento ímpar que as representa no início do século XVI. As aldeias históricas revelam o respetivo desenho dessa época. Vemos muralhas muito incompletas em relação ao que eram há 500 anos: cidadelas quase inexpugnáveis, com torres, baluartes, fossos, muros duplos, dentro das quais viviam centenas de pessoas,  preparadas para resistir a longos cercos. Arquiteturas defensivas, típicas de sociedades em guerra constante. 

Almeida tinha uma torre no interior da muralha, que explodiu no dia 26 de agosto de 1810, quando o paiol foi atingido por uma bombarda do exército napoleónico, que a cercava. Houve centenas de mortos, a fortaleza foi destruída e ocupada pelos Franceses. Uma mortandade tremenda na pequena vila de camponeses e militares. Quantas lágrimas, quanto desespero! Inimagináveis agora,  ao observarmos este local tão pacato.

Um mês antes, um exército de 6000 soldados franceses tinha-se deparado com uma coluna de 4000 soldados anglo-lusos,  que travava o seu avanço do outro lado da ponte do rio Côa. Uma enormidade de homens aos tiros, a matarem-se uns aos outros de cada uma das extremidades, nesta ponte solitária e silenciosa. 

Na sala da Primeira Grande Guerra, encontra-se uma fotografia de Arnaldo Garcês, fotógrafo que registou o quotidiano dos soldados portugueses nas trincheiras. Imagem maravilhosa de um soldado a celebrar a vitória. Ouve-se,  na sala,  música de fundo de Edward Elgar, Nimrod: a guerra até parece entusiasmante quando se ouvem obras-primas como esta. 



Aqui situava-se o castelo de Almeida, destruído em 26 de Agosto de 1810.

Representação do castelo no século XVI. Desenho de Duarte D'Armas 

Ponte sobre o rio Côa, local de uma célebre batalha entre o exército napoleónico e as tropas anglo-lusas, em Julho de 1810




quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Almeida

Fui sexta à noite para a aldeia, tive de voltar atrás porque as estradas estavam cortadas. No dia seguinte, fui e assisti a coisas incríveis: não passei por um único carro ou bombeiro, todas as aldeias arderam.

Vi muitos incêndios, mas nunca um total abandono como agora.
Quando vim embora, repetiu-se o cenário: as aldeias históricas estavam todas ardidas. Muitas casas safaram-se porque as populações ficaram. Mas vi carrinhas e algumas casas completamente ardidas.
Só queria que os políticos, que demoram 15 dias a pedir reforço de meios, fizessem uma pequena viagem de carro, de Marialva a Mêda, para ver o cenário dantesco
Quando tens 3 ou 4 bombeiros num quartel com vários populares lá dentro e uma mata a arder a poucos metros, perguntas: porque não vão apagar o fogo? Respondem que não podem sair sem autorização do CODU - suponho que seja o centro de comando da proteção civil - porque senão são penalizados.
Enquanto não derem autonomia aos bombeiros e eles estiverem sob o comando da proteção civil - que são cargos políticos de nomeação e muitas vezes não percebem puto de incêndios, mas têm o poder para coordenar equipas e meios - estamos completamente perdidos.

Com estas descrições assustadoras que fomos partilhando no WhatsApp fui para Almeida a pensar que encontraria tudo queimado. Felizmente, ao longo da A25, vi pouca coisa.
No desvio, voltei a reencontrar campos amarelos: cristas de ervas douradas que ondulam com o vento da serra, a lembrar os girassóis de Espanha, ali ao lado. Carrascos dispersos entre fragas de granito cobertas de musgo. Ar puro, descongestionado e livre.

Desliguei o ar condicionado, abri as janelas e a porta, saí do carro para respirar, encher os pulmões, experimentar os sentidos que a nova terra me oferecia. Vinha fechado, a ver as paisagens em movimento, ainda com os cheiros da cidade que deixei para trás, em mim. 

Num instante, tudo mudou.Cruzamos as duas filas de muralhas, entramos na pequena vila fortaleza. Pouca gente. Charme antiquado, decadente, casas velhas e senhoriais, abandonadas. Igrejas, lápides nas ruas com nomes de escritores - muitos que ali viveram. 

O país não valoriza a sua memória e património, preferiu construir estádios de futebol, autoestradas e, agora, um TGV de utilidade duvidosa. Não consegue evitar incêndios que destroem florestas, zonas protegidas, pequenos negócios familiares e vidas. Continua a doer: chegar a uma vila histórica, ver tanta riqueza arquitectónica desperdiçada e subaproveitada. Ruas e casas vazias.

País, Nação, conceitos transitórios na história humana. Tudo se desvanece e desaparece. Em Portugal, talvez um pouco mais depressa do que noutros países antigos, por incúria, irresponsabilidade, insensibilidade.

Encontramos um ambiente caloroso e muita gente reunida no restaurante Granitus, espanhóis e portugueses, a lembrar que estamos numa terra raiana. Fazendo esquecer, por momentos, o isolamento e o silêncio das ruas lá fora. Empregados de mesa das duas nacionalidades. Negócio gerido, talvez, por uma família luso-espanhola e amigos dos dois lados. Não perguntei a razão. Línguas e países diferentes, pessoas unidas no mesmo restaurante, sem fronteiras. Orgulhosamente juntas. 






sábado, 9 de agosto de 2025

Praia do Almoxarife



Depois de um dia passado no Pico,  a reviver memórias, a mergulhar em pequenos portos de águas tépidas e a rever aldeolas de adegas garridas entre vinhas negras - contrastes de paisagens cristalinas que parecem ter sido desenhadas propositadamente por um arquiteto paisagista para deslumbrar os visitantes - regressamos à Horta.

Vamos às compras e à praia, o carro fica com os vidros abertos para arejar o calor húmido e sufocante dos dias. Esquecemos as chaves na ignição, os documentos e o cartão de crédito. Regressamos: o carro continua intacto, no mesmo sítio, vidros abertos, documentos no porta-luvas. Segurança, tranquilidade e liberdade, assim são estas pequenas ilhas, onde as pessoas se conhecem umas às outras. Roubar um carro para quê? fugir para onde com ele?
O frigorífico está cheio de peixes congelados: enxaréu, bicuda, bodião, peixe-porco, bocanegra, veja, robalo, lírio, atum. Peixes dos Açores, grelhados nestes dias, escalados na chapa, na esplanada com vista para o Pico.

- O problema das ilhas são os mexericos, toda a gente fala dos outros. Um vez, não apareci no café onde costumo ir. Quando me viram, perguntaram logo onde estive a essa hora. Não há privacidade social, somos controlados e vigiados constantemente por todos. Nas ilhas pequenas é pior.

Conversa ao jantar entre amigos. Mesa farta: vinho, lombos de atum, doces dos Açores - espécies de São Jorge, tarte de café da Fajã dos Vimes, massa sovada - a melhor das ilhas! - da Praia do Norte, do Faial. Cigarrilhas da Fábrica de Tabaco Micaelense e cálices de Jameson. Continentais que vivem nas ilhas, descobrem conhecimentos comuns e lugares frequentados por ambos. O mundo é pequeno. Estou num lugar distante, no meio do Atlântico, sinto-me no centro do mundo, em casa. Jogamos o jogo tradicional da Ramalhinha, num tabuleiro sólido de madeira, fabricado só nos Açores. Sem televisão nem telemóveis, como antigamente. A luz das velas substituída pelo luar da lua cheia sobre a varanda.
O mundo seria perfeito se não ligasse os dados móveis, não consultasse o FB, nem o Instagram, se não estivesse atento ao mundo alucinante lá fora: aniquila-se Gaza, mata-se um povo à fome. Em Inglaterra, um grupo de ativistas lança tinta em aviões militares que matam crianças em Gaza, é ilegalizado, considerado terrorista. O governo que destrói e mata palestinianos inocentes não sofre uma única sanção! Arranjam-se as explicações mais estapafúrdias para justificar o injustificável. 
Pico

Pico

Pico

Pico


Faial

Faial

Faial 

Faial 

Faial

Faial