Conheci o João há muitos anos, no sul de Inglaterra. Um miúdo tímido, com uma mochila às costas maior do que ele e
um saco de pano cheio de conservas. Achei bizarro:
- Por que trazes tantos enlatados contigo?
- Vim
carregado de enlatados porque pensei que
em Inglaterra era tudo mais caro. Trouxe de Portugal para poupar dinheiro na
alimentação.
Dei uma grande gargalhada - era completamente
louco. Foi assim que nos conhecemos.
Trabalhámos numa quinta na apanha
de maçãs. Por sermos cristãos, católicos, e com hábitos culturais parecidos, tornamo-nos próximos. Os restantes
trabalhadores, eram sudaneses: muçulmanos rigorosos, com quem convivíamos e nos dávamos bem. Ao
contrário deles, bebíamos álcool, comíamos carne de porco,
não interrompíamos o trabalho às 3 da tarde para fazer abluções e rezar virados para Meca.
O João ficou apenas um mês na
quinta, regressando a Portugal no início das aulas. Eu voltei à Turquia um
pouco mais tarde, onde estudava engenharia agrónoma. Beneficiava de uma bolsa
de estudo que o governo do meu país oferecia aos melhores estudantes, em países
com os quais tinha protocolos. Vivia quase todo o ano na Turquia, num pequeno
quarto da residência universitária. No verão, trabalhava na quinta, no condado de kent, perto
de uma vilazinha pitoresca chamada Cranbrook. Todos os anos, ligava antecipadamente ao
patrão, Mr. Pullitzer, a perguntar se havia trabalho.
Não é por racismo, nem
preconceito, mas por o João ser branco, percebi logo que não tinha a mesma necessidade
de trabalhar que nós tínhamos. Era um miúdo imberbe e ingénuo, mais novo do que nós. Tinha
18 anos, frequentava ainda o liceu, era a sua primeira vez em Inglaterra, a ganhar
os trocos necessários para os gastar em viagens de comboio a Londres, aos
fins-de-semana, sem preocupação em economizar - apesar das latas de conserva.
Eu e os sudaneses andávamos
nessas andanças há mais tempo, frequentávamos a universidade. Eu tinha 24 anos,
vivia independente desde que saíra do Benim para estudar engenharia em Antalya.
Levava uma vida rigorosa e apertada. Quando as maçãs não estavam maduras, passeava
nos pomares, brincava com os dois dobermanns do sr. Pullitzer, que se escondiam nas filas de macieiras para
me fazerem emboscadas inofensivas.
Vivemos algumas peripécias
curiosas que um dia poderei contar. O João regressou a Portugal e, o mais
incrível de tudo, é que ficamos amigos até hoje. Correspondemo-nos muito tempo
por carta, e depois pela internet. Regressei ao Benim quando terminei o curso, tornei-me funcionário
governamental no gabinete de apoio à reflorestação de comunidades rurais.
O mais incrível ainda - e a vida
tece-se de encontros e acontecimentos improváveis - é que, na única vez que vim a Portugal visitar
o João, deu-se a coincidência extraordinária de encontrar a minha compatriota, Angélique Kidjo. Caminhávamos pela esplanada junto ao mar, na cidadezinha de Espinho, próxima do Porto, onde ele vive. Vi o enorme cartaz com a sua figura esbelta em grande plano, a
anunciar o concerto que daria. O meu coração sobressaltou-se, fiquei com o
nervosismo próprio que antecede o presenciar de um grande evento. Expliquei ao
João quem era ela: uma compatriota que
eu tivera o prazer de conhecer pessoalmente e com quem troquei algumas palavras
- uma diva, uma grande senhora da música
africana, uma lenda vida. Não poupei palavras, não encontrei outras para
exprimir a importância que ela tem e o
orgulho que nós, benineses, sentimos por ela - uma embaixadora da nossa cultura, das muitas Áfricas
que existem no nosso imenso continente - a não ser estes chavões redundantes.
Sobressaltei-me de emoção,
gaguejei. O concerto era imperdível:
- João, cancela tudo o que
tiveres para fazer, traz os teus filhos, esposa, amigos, todos! Para ver o concerto.
Ficou impressionado com a minha
veemência. Disse que não me preocupasse, iriamos cedo, ficaríamos sentados nos
primeiros bancos, em frente ao palco
montado no largo da câmara.
O concerto decorreria na noite
desse mesmo dia. Entrada livre. Ocupamos os nossos lugares aleatoriamente. Aguardei
religiosamente o início do concerto da minha amada compatriota, contando os
minutos que restavam para o grande momento. Olhei
discretamente para trás: a praça estava repleta de pessoas de todas as idades, todas
as cadeiras ocupadas e à volta delas, de pé, muitas outras
pessoas. Senti um orgulho
tremendo.
Entram os músicos da Orquestra
Clássica de Espinho. Aplausos.
Entra o maestro, Pedro Neves. Aplausos.
Tocam uma música introdutória, lembrando vagamente ritmos africanos.
Aplausos.
O ecrã gigante exibe um
curto filme sobre o projeto de Angélique
Kidjo com orquestras clássicas dos vários países por onde tem passado.
Entra um guitarrista africano. Toca
uma melodia a solo, acompanhado pela
orquestra. Entra Angélique Kidjo, de
touca a cobrir a nuca e o traje garrido
de linhas africanas. Caminha diretamente para o microfone no centro do estrado - uma rainha
deslocando-se solene, segura de si, enchendo o palco com a sua presença forte. Começa
a cantar.
O público, inicialmente circunspeto, dançou, pôs-se de pé, acompanhou os ritmos
mais vibrantes - adaptações de temas africanos conhecidos e originais. Vivi
tudo com especial comoção, pelos motivos que referi. Vieram-me lágrimas aos olhos.
Angélique Kidjo finalmente falou, em Inglês, sobre o seu
projeto, sobre a importância da música na
união dos Seres Humanos.
- Somos Todos Seres Humanos. Não
importa a nossa cor, ideologia, religião. Ao destruir e ser intolerante com
outras culturas, perdemos todos a nossa humanidade comum.
A Humanidade é só uma.
Grande ovação. A audiência ficou
mais entusiasmada e redobrou de energia na música seguinte: Jerusalema.
Quis gravar um vídeo e partilhá-lo
nas redes sociais para certas pessoas o verem, com uma legenda simples e irónica:
Para todos os racistas e
preconceituosos deste mundo.
Não o fiz.
No fim do concerto, não resisti.
Que diabo! Devíamos ser os únicos benineses em Espinho. Subi as escadas do
palco, os jovens músicos arrumavam os instrumentos. Pedi autorização para entrar
no camarim e falar com ela. Foi fácil. Ao verem um negro desconhecido a falar inglês,
devem ter pensado que se tratava de um
amigo próximo. Chamaram-na imediatamente.
Ela apareceu sem a touca, com o
cabelo curto, mais velha de perto, cansada
das duas horas de concerto. Dirigi-me a ela em Fon, a língua ancestral dos
nossos antepassados, falada no Sul do
Benim, onde ambos nascemos:
- Angélique, muito obrigado. Não
podia sair daqui sem falar contigo.
Olhou-me muito surpreendida por encontrar uma pessoa a falar a mesma
língua nativa. Relembrei-lhe o encontro que tivemos em Ouidah, há
muitos anos, e o número de vezes que a vi em concertos no nosso
país. Ficou esfusiante com a minha
generosidade e ligação à sua música. Demos um abraço apertado, como se faz em África, quando pessoas da mesma família se encontram.
Tiramos selfies. Perguntou onde se podia comer àquela hora e convidou-nos a
ir com ela.
Fomos a um
restaurante, com o seu staff, em frente ao mar, num largo passeio de calcário, comum em
Portugal, de pedras brancas e pretas, meticulosamente
colocadas formando padrões geométricos. Estivemos mais algum tempo juntos, a petiscar e
a beber. Foi um dia memorável.